Domingo, 20 de Novembro de 2005

Esdrúxulas com divergências (6)

Vimos que o acordo ortográfico estabelece ortografias duplas para um certo grupo de palavras esdrúxulas ou proparoxítonas. Estão bem identificadas tais palavras. A antepenúltima sílaba termina em “e” ou “o”, a que segue um “m” ou um “n”. Exemplos dessas duplas grafias são: académico/acadêmico, anatómico/anatômico, António/Antônio, génio/gênio.

Não existem grafias duplas para todas estas palavras. Por exemplo, temos a palavra “sêmea” sem que exista “sémea”. No entanto, o número destas palavras é muito reduzido.

O “e” ou o “o” da sílaba tónica destas palavras com ortografia dupla é aberto em Portugal, nos PALOP e em Timor. É por isso que actualmente tais palavras recebem acento agudo.

No Brasil a situação é menos clara. Lembro-me de ter lido um artigo dum linguista brasileiro em que se defendia para o seu país a ortografia “António”. Ele perguntava a razão de se dizer “António” e se escrever “Antônio”. Parece-me que, ouvindo brasileiros falar, o que podemos fazer todos os dias, a sílaba tónica das palavras esdrúxulas em causa soa umas vezes mais aberta outras mais fechada. De qualquer modo, parece que é fechada na maior parte do Brasil, sendo essa a razão por que actualmente nesse país se usa o acento circunflexo.

Não sendo aconselhável, como vimos, eliminar os acentos das esdrúxulas, de que outras maneiras poderíamos fazer desaparecer estas divergências? É fácil a resposta: usando-se sempre o acento agudo ou o acento circunflexo nestas palavras.

Examinemos a segunda solução. Aqui em Portugal teríamos de escrever “tônico”, embora disséssemos “tónico” com o primeiro “o” nitidamente aberto. Desculpem a expressão, mas ficava o caldo entornado. Onde é que já se tinha visto em português o acento circunflexo sobre uma vogal aberta? Fosse qual fosse a razão dessa regra, ela era insuportável e contrariava o que sempre tínhamos conhecido. Milhões se sentiriam violentados, vexados, humilhados, excluídos.

Igualmente insuportável seria para muitos o ter de se usar sempre o acento agudo. Imagine-se um brasileiro à volta com a palavra “sêmea”. Qual o acento agora? É fácil, conclui ele, lá em Portugal o primeiro “e” é fechado como no Brasil, logo a ortografia continua a ser “sêmea”. Então e “gênio” como é? O nosso brasileiro tem de saber que neste caso o “e” é aberto em Portugal e passar a escrever “génio”. Como é que se sentirá este brasileiro?

O uso do acento agudo nestes casos de pronúncia divergente é a regra estabelecida pelo acordo luso-brasileiro de 1945, na base XIX, que a seguir se transcreve.

Emprego do acento circunflexo nas vogais “a”, “e” e “o” tónicas dos vocábulos proparoxítonos, quando elas são seguidas de sílaba iniciada por consoante nasal e são invariavelmente fechadas na pronúncia de Portugal e do Brasil. (Exemplos: “câmara”, “pânico”, “fêmea”, “cômoro”.) Emprego do acento agudo em vez do circunflexo, quando não se dá essa invariabilidade de timbre. (Exemplos: “académico”, “edénico”, “anatómico”, “demónio”.) O mesmo se observará em relação aos paroxítonos que, precisando de acentuação gráfica, estejam em idênticas condições. (Exemplos: “Ámon”, “fémur”, “Vénus, “abdómen”, “bónus”.) Observe-se que o acento agudo nos sobreditos casos de pronúncia não invariável serve apenas para indicar a tonicidade, e não o timbre.

Devido a limitações do editor deste blogue, as palavras em itálico no acordo foram colocadas entre parêntese.

Estabelece este texto que, em caso de divergência, deve-se usar o acento agudo, mesmo que milhões de pessoas pronunciem como se o acento fosse circunflexo. É esta a filosofia da ortografia vigente em Portugal. Antes os brasileiros escreviam “Antônio”, “gênio”, etc. Agora seriam obrigados a escrever “António”, “génio”, etc. De acordo com outras normas do acordo, teriam de escrever “acto”, “baptismo”, etc., voltando a usar consoantes que já tinham sido eliminadas no Brasil.

Como era de esperar, houve no Brasil muitas e justificadas reacções negativas a este acordo. O poder político brasileiro teve de ceder e os brasileiros voltaram à ortografia anterior. Fez bem na minha opinião. O acordo era mau em sim mesmo e humilhante para o Brasil.

É muito fácil criticar os ilustres linguistas que elaboraram o acordo de 1945, que veio a ser posto de lado no Brasil, e o projecto de 1986, o tal que quase acabava com os acentos. É mesmo muito fácil criticar a posteriore, depois dos acontecimentos. As intenções desses ilustres académicos eram boas – a unificação da ortografia. Prefiro os seus erros às críticas disparatadas, para não dizer pior, de pessoas como Freitas do Amaral que nunca vi fazerem nada pela língua. Vale, no entanto, ver a pena ver por que falharam essas tentativas bem intencionadas. Uma das razões é que estão destinadas ao fracasso mudanças ortográficas que tentem uniformizar grafias que correspondem a claras diferenças de pronúncia.

Na minha opinião, o acordo de 1990 é equilibrado e tem cedências de todas as partes. Uniformiza o que é possível uniformizar. Não humilha ninguém. Como se costuma dizer, tem pernas para andar.

Com este artigo acabou a análise da acentuação das palavras esdrúxulas. Examinámos as alternativas de tratamento do assunto. Vimos por que razão se justifica a solução encontrada, que envolve à volta de 1400 ortografias duplas.

As regras do acordo ortográfico que falta examinar são muito menos polémicas que algumas já tratadas antes. Não são nada que se compare com a eliminação de consoantes sempre mudas, com as ortografias duplas no caso de consoantes que umas vezes se pronunciam outras não e com as ortografias duplas em palavras esdrúxulas. Daqui para a frente é tudo muito mais pacífico. Mesmo assim, contém matéria que irrita muito boa gente que não suporta a mínima alteração na ortografia

João Manuel Maia Alves
publicado por João Manuel Maia Alves às 17:41
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